Em meio às praças e ruas de nossas cidades as encontramos, chamando de longe nossa atenção. Vestidos coloridos, largos, esvoaçantes. Lenços nos longos cabelos. Elas nos abordam insistentes para que as deixemos anunciar nossa sorte em troca de muito pouco ou quase nenhum pagamento. Mas basta uma aproximação mais direta de nossa curiosidade e elas se esquivam, se recolhem a seu linguajar próprio, delimitando claramente o território no qual nós, não-ciganos, não temos permissão para incursionar. Sugerem um mistério a ser preservado.
Mas nossa curiosidade é insistente, e fomos em busca de imagens e representações desse universo que, a um só tempo, se exibe e se esconde. Nossos esforços, além da convivência com um grupo de ciganos de Campinas, nos permitiram assistir, fotografando e registrando em vídeo, a algumas cerimônias de casamento de ciganos. Essa festividade nos pareceu uma oportunidade privilegiada para nossas observações, por representar um momento de encontro e de celebração do povo cigano, no qual, suspeitávamos, apreenderíamos, através de nossas fotografias, vídeos e reflexões, alguns dos valores significativos para o grupo que estariam se manifestando de maneira mais concreta e, mais precisamente, visual.
Partíamos, então, das reflexões de Goffman, trazendo-as para o nosso objeto de interesse - o casamento cigano - considerando que ele conteria em si os elementos mais gerais que significam a renovação dos laços simbólicos que unem a comunidade.
” Na medida em que uma representação ressalta os valores oficiais comuns da sociedade em que se processa, podemos considerá-la, à maneira de Durkheim e Radcliffe-Brown, como uma cerimônia, um rejuvenescimento e reafirmação expressivos dos valores morais da comunidade.” (GOFFMAN, 1945, p. 41)
Festa para os olhos
Chama a atenção de quem assiste a um casamento cigano o que talvez seja uma de suas principais características: a profusão de elementos visuais. Tratamos assim de aproveitar o momento e registrá-lo no quanto pudemos. As fotos aqui apresentadas foram realizadas por Fernando de Tacca, participante da exploração fílmica dos dois casamentos realizados, São Paulo e Campinas, no ano de 1993. O estudo sobre os ciganos e as informações e reflexões aqui partilhadas constituem parte de uma dissertação de mestrado, concluída no Curso de Mestrado em Multimeios, Instituto de Artes, Unicamp, em 1995. O que se segue são algumas breves descrições sobre uma festa de casamento cigana, e o que ela nos parece revelar sobre o que nos atraiu mais intensamente, o foco, na câmera fotográfica e em nossas reflexões – a importância e o significado do papel desempenhado pela mulher cigana para a preservação simbólica do seu grupo e sua etnia.
Embora o texto seja certamente útil para a melhor compreensão de parte do resultado do nosso trabalho, acreditamos que são as fotografias aqui expostas que comunicam melhor a combinação de exuberância e de mistério de que parece ser constituída a cultura cigana, e sem sua riqueza e beleza algo fundamental teria faltado ao nosso trabalho.
O casamento
Algumas particularidades distinguem e dão a um casamento cigano o seu caráter específico. A festa de casamento é prevista para durar de dois a vários dias, reunindo ciganos de todas as partes do país, e mesmo do exterior, pois os convites são dirigidos aos membros da comunidade em geral.
As despesas das festas de noivado e de casamento, incluindo sua organização e o vestido de noiva, são de responsabilidade da família do noivo. Os preparativos do banquete de casamento ocorrem na residência dos pais dos noivos. Num esforço comunitário, com a participação dos parentes mais próximos do noivo - homens e mulheres envolvidos - são preparados os pratos típicos da festa.
No dia do casamento na igreja, antes de todos partirem para a cerimônia, ocorre uma seqüência de eventos, agora na casa da noiva. Esta já está pronta, vestida de branco, quando chega a família do noivo, dançando ao som de músicas ciganas.
Na sala de jantar, onde já está disposta a mesa com diversas comidas e bebidas, os homens se sentam. De um lado da mesa, a família do noivo. Do outro, a da noiva. A conversa acontece em romani, as mulheres permanecem à volta. É simulada uma negociação - a compra ritual da noiva. Moedas de ouro trocam de mãos. Em seguida, abrem uma garrafa de bebida, envolvida em um pano vermelho bordado, que os homens à mesa bebem – a proska .
Surge então a noiva, vestida de branco, pronta para a Igreja. Mais música e agora a noiva dança com o padrinho, ainda na sala de jantar/estar. Em seguida, todos saem para se dirigirem à igreja; a noiva em uma limusine. O cortejo com as famílias seguindo, e apenas o noivo não estava presente, pois aguarda na igreja. Lá, a cerimônia é convencional, exceto pelos trajes dos convidados e padrinhos vestidos com as tradicionais roupas ciganas, e a profusão de jóias. Apenas algumas dezenas de convidados compareceram à cerimônia religiosa, considerada mais íntima.
O momento seguinte do casamento ocorre num clube alugado para a ocasião e onde um conjunto garante a animação musical da festa. Desde o início, danças em círculo e uma bandeira vermelha com o nome dos noivos. Os convidados vão chegando aos poucos, juntando-se às danças, enquanto duas grandes mesas, ao longo das paredes, são arrumadas. No banquete, homens e mulheres ficarão separados, em lados opostos. À medida que cresce o número de pessoas, aumenta, de certa forma, a confusão: a solenidade das mesas contrasta com os colchões espalhados nos cantos do salão, onde dormem crianças. A festa vai chegando ao fim quando a noiva deixa o salão de festas, juntamente com a família do noivo, à qual passa a pertencer. Entre a festa do primeiro dia e a que ocorrerá no dia seguinte, há a noite de núpcias do casal.
O segundo dia
A festa começa novamente no dia seguinte, agora na casa dos pais do noivo, onde o casal passa a residir. O banquete continua - agora para um número menor de convidados. No lugar do branco do dia anterior, o vermelho se sobressai na festa - nos cravos, usados pelos convidados, na decoração, na bandeira, nas roupas da noiva. Esta, à entrada da casa, recebe cada convidado, junto a uma bacia com água de onde tira cravos vermelhos, para oferecer-lhes. Em troca, recebe notas de dinheiro, geralmente de pequeno valor. Santana registra este momento, em outro casamento estudado:
“A continuação da festa de casamento, depois do primeiro dia, será toda voltada para a noiva, que é agora, uma mulher casada. Sempre acompanhada do marido, ela deixa o semblante triste que a acompanhou até este momento. Todos a procuram para receber dela uma flor vermelha e crianças, jovens e velhos lhe retribuem com dinheiro. Isso significa que a cumprimentam por seu novo status na sociedade, alcançado segundo a tradição dos ciganos.” (Santana , p.112)
Mulher cigana
A observação e registro do casamento cigano nos conduziu a algumas reflexões sobre o lugar e o papel desempenhado pela mulher cigana no interior de sua cultura, de fundamentos notoriamente patriarcais. Em um aparente paradoxo, tudo se passa como se a cerimônia de casamento constituísse não uma festa dos noivos, mas mais precisamente da noiva cigana. Esta parece ser o centro em torno do qual todos os gestos e rituais se dirigem, enquanto ao noivo, observa-se, parece estar reservado um papel secundário, como simples coadjuvante.
A partir dessas observações, e de outras realizadas em outros momentos da pesquisa, o que testemunhamos parece ultrapassar a simples celebração de um casamento, mas aponta para a celebração do que representa a mulher na cultura cigana. A noiva, mais do que ela mesma – jovem que se casa – representaria a mulher cigana, encarnando portanto, simbolicamente, todas as mulheres, e seu papel de guardiãs da tradição, cultura e identidade do grupo. Isto pode ser melhor compreendido se colocarmos em oposição algumas das atribuições referentes aos papéis que homens e mulheres desempenham no interior da cultura cigana.
Tomemos como exemplo, no ritual de casamento, o momento da compra da noiva, quando um aspecto importante da cultura cigana é reafirmado. Mesmo eventualmente sendo apenas simbólica, a cerimônia significa que o poder de formar as famílias – o casamento arranjado – é uma atribuição dos pais e, mais precisamente, dos homens. Cabe aos jovens submeterem-se a eles. O casamento acontece sob o signo da autoridade dos pais, da tradição, e apresenta o poder masculino da decisão, em contraponto ao poder feminino que será celebrado a partir de então. A notar que a compra da noiva é um negócio, atribuição normal e cotidiana dos homens.
Sabemos que, entre os ciganos, na maioria das vezes, é o homem o responsável principal pelo sustento da família – em atividades de comércio, artesanato ou indústria. Isso significa que a ele cabe o contato, ao nível da atividade econômica, com a sociedade dominante, pois os grupos ciganos não são auto-sustentáveis. Ao exercerem o seu trabalho, não lhes é conveniente apresentar-se como ciganos, devido aos preconceitos que freqüentemente envolvem sua imagem – sabemos de vários ciganos que ocultam sua condição étnica: enquanto participam da sociedade cigana, não admitem aparecer publicamente para os não-ciganos como tal. Seria uma atitude de defesa, para não se sujeitar aos temores e desconfianças dos não-ciganos.
O homem cigano teria, portanto, o papel de, com relação à sociedade dominante, apresentar-se ao nível de relações concretas, materiais, assegurando a subsistência da família. Com relação à própria comunidade, ocupa o lugar tradicional de uma sociedade patriarcal – representa a autoridade, a decisão: é, de muitas forma, o senhor dos destinos, ao qual a mulher deve se submeter.
À mulher, por sua vez, cabe o papel de se relacionar simbolicamente com as sociedades dominantes, carregando no próprio corpo a imagem que afirma e garante a sobrevivência do grupo, não mais no nível estritamente material: ela é sempre a cigana, identificada como tal, que aparece como a senhora da magia e dos mistérios, marcas da cultura a que pertence. Em seu próprio corpo carrega os principais valores e expectativas do grupo: virgindade/fertilidade, fidelidade às tradições. Seu papel, que será exaltado na festa de casamento, tem duas dimensões: assume a responsabilidade tanto pela reprodução física do grupo como por sua reprodução simbólica.
Observamos então que a festa de casamento em si apresenta-se como a celebração da mulher, dessa vez expressa no corpo não de todas as mulheres, mas daquela que as simboliza – a noiva. Do branco usado na igreja ao vermelho do segundo dia do casamento, a transformação que ocorre significa a trajetória que deve ser aquela de todas as mulheres ciganas. A tradição do branco ao vermelho significa o fim da virgindade e o início das responsabilidades de mulher, através da modificação operada no seu próprio corpo: hímen rompido ao qual corresponderão as camisas rasgadas no segundo dia; e através das marcas que carregará na mente: os rituais em torno desse acontecimento – a espera e a exibição do sangue.
A cor vermelha, a mesma que significa o sangue do fim da virgindade, é a cor, segundo as próprias ciganas, “essencialmente cigana”. Significa “alegria, virgindade, fertilidade, sorte – tudo de bom”. É a cor presente em todo o segundo dia do casamento –vestes da noiva, flores, bandeira, decoração – quando a menina se tornou oficialmente portadora da identidade cigana. Isto já a espera há muito tempo. A broska, com a qual as famílias celebram o noivado e o casamento de seus filhos, já vem envolta num pano vermelho, que a noiva usará ao assumir sua condição de cigana (e que será o seu primeiro lenço de casada).
José Carlos Rodrigues nos chama a atenção para a necessidade de se estudar a maneira pela qual cada sociedade força os seus indivíduos a fazerem determinados usos de seus corpos. A forma ostensiva como os ciganos, e em especial as ciganas, parecem se esforçar em significar com seus corpos torna oportuna as suas reflexões sobre o lugar que o corpo ocupa nas sociedades:
“….é a sociedade em sua globalidade, e cada fragmento social em particular que decidem o ideal intelectual, afetivo, moral ou físico que a educação deve implementar nos indivíduos a socializar, e, tanto quanto no espírito, uma sociedade não pode sobreviver sem fixar no físico de suas crianças algumas similitudes essenciais que as identifiquem e possibilitem a comunicação entre elas…. Ao realizar este trabalho, a Cultura dita normas em relação ao corpo; normas a que o indivíduo tenderá, à custa de castigos e recompensas, a se conformar, até o ponto de estes padrões de comportamento se lhe apresentarem como tão naturais quanto o desenvolvimento dos seres vivos, a sucessão das estações ou o movimento do nascer e do pôr-do-sol”. (RODRIGUES, 1975. P.45)
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